Introdução
Nas duas últimas décadas, esforços têm sido realizados, especialmente em países anglo-saxônicos, no sentido de definir e avaliar intervenções pautadas pelo modelo de superação (recovery), promovidas entre os usuários de serviços de saúde mental e os seus cuidadores. O processo de superação se constitui em um modo de viver uma vida significativa, alicerçada na dinâmica entre a pessoa, seus suportes de apoios formais e informais e seu contexto cultural, facilitando ou dificultando esse processo.
Em vários países, especialmente de língua inglesa, aspectos relativos ao processo de superação tem sido adotado como o foco principal dos serviços de saúde mental e indicadores das boas práticas desses serviços. Em geral, existe um alto nível de satisfação dos estudantes com os Recovery Colleges. Isso proporciona uma significativa redução de custos e da utilização dos serviços de saúde mental, bem como uma diminuição de internações e mudanças na prática dos prestadores de serviços.
Dados disponíveis indicam que estudos quantitativos com um alto nível de evidência foram sub-representados, devendo ser considerados como um projeto de avaliação futura. Apesar da disseminação dos Recovery Colleges no mundo na última década, ainda não existe nenhum programa desenvolvido na América Latina. Nesse sentido, há uma necessidade de produção de conhecimento que possa alimentar o desenvolvimento de instrumentos para medidas do processo de superação, bem como políticas e práticas orientadas a ele.
O conhecimento sobre as mudanças que podem ser promovidas pela inclusão dessas novas práticas no tratamento psiquiátrico usual, em termos das próprias variáveis associadas à superação, tais como como bem-estar e esperança, bem como aspectos clínicos, como adesão à medicação e funcionamento social, é quase inexistente. Entender e promover o processo de superação nos transtornos mentais graves é fundamental para promover serviços de saúde mental adequados. Apesar de ainda não falarem sobre superação no Brasil, há um consenso de que ele pode ajudar no avanço do sistema ou da assistência de saúde mental. Portanto, propõe-se o presente projeto ser focado no desenvolvimento e testagem do primeiro Recovery College do contexto brasileiro, a ser denominado por nós como Escola de Superação e Cidadania.
Os processos de superação levam as pessoas com transtorno mental grave a desfrutarem de uma vida de maior qualidade. As práticas orientadas por essa abordagem cobrem um horizonte em que a pessoa com o transtorno se beneficia das estratégias de enfrentamento da doença e de suas potencialidades ao invés de se estar somente focada na remissão de sintomas. Tais práticas são promovidas pela corresponsabilidade e uma esperança realista dentro do processo de conviver com o transtorno e da superação de adversidades de maneira geral. O empoderamento e o bem-estar dessas pessoas são enfatizados, aliados a um tratamento mais humanizado, o que inclui a participação de outras pessoas com o mesmo diagnóstico (suporte de pares), ou seja, que também estão em processo de superação.
A promoção de superação possibilita que pessoas com transtornos mentais graves possam viver uma vida significativa, autônoma e com empoderamento na comunidade, apesar de muitas desigualdades que persistem, tais como: altos níveis de desemprego, baixo nível educacional, alto nível de estigma e exclusão social. Programas educacionais podem focar nessas lacunas, por meio da educação de adultos, apoiando as pessoas com transtornos mentais em seu processo de superação e na aquisição das competências necessárias uma cidadania plena..
Na Escola de Superação e Cidadania seus participantes serão vistos como estudantes e não como pacientes ou usuários. Deverão ser oferecidos vários cursos e oficinas que se adaptam às necessidades específicas dos estudantes, capacitando-os com novas habilidades que podem promover sua superação em vários aspectos. Isso inclui desde cursos voltados ao manejo de doenças, saúde e bem-estar, a cursos de habilidades para a vida, artes, emprego e informação. A Escola de Superação e Cidadania deve envolver pessoas em seu próprio processo de superação ou pares em todos os aspectos do programa, como professores, a sós ou em conjunto com profissionais de saúde mental.
A Escola de Superação e Cidadania não deve buscar substituir a educação formal, mas sim dar subsídio e apoio para que os seus estudantes possam ser reintegrados ao sistema sócio-acadêmico-profissional da sociedade. Conforme mencionado, devem ser oferecidos diversos cursos e oficinas que se adaptam às necessidades específicas dos alunos, dotando-os de novas competências que podem promover a sua recuperação em diversos aspectos. Isso abrange desde cursos em gestão de doenças, saúde e bem-estar até cursos de habilidades para a vida, artes, emprego e informação. A Escola de Superação e Cidadania deverá envolver pessoas no seu próprio processo de superação sob o apoio de pares em todos os aspectos do programa, como professores, em conjunto com profissionais de saúde mental.
A Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Pessoas com Esquizofrenia – ABRE já possui um projeto ligado empoderamento de pares, que é o Laboratório de Criação Casa Azul (LACCA), que já possui atividades ministradas por eles. Esse projeto teve início em março de 2016, através de oficinas artístico-culturais oferecidas em parceria com o PROESQ-EPM/Unifesp. Tais atividades não estão restritas ao universo dos transtornos mentais, tendo como objetivo principal: oferecer a oportunidade de conhecer, vivenciar, refletir e dialogar sobre arte e cultura. Algumas das oferecidas pelo LACCA, entre outras, são: artes plásticas, escrita, filosofia, informática, inglês, música, mindfulness, taichi, teatro, yoga. Vale ressaltar que esse projeto foi inspirado nos trabalhos da psiquiatra brasileira Nise da Silveira e na pintora mexicana Frida Kahlo.
O Imagus Recovery College (Escola de Superação e Cidadania), é um dos principais e mais recentes projetos da ABRE, sendo um projeto psicoeducativo baseado e apoiado pelo Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM-EPM/Unifesp). O piloto está planejado para ter início no primeiro semestre de 2025, e, para cumprir esse objetivo, estão sendo desenvolvidas mídias sociais e a continuidade do LACCA. Atualmente estão sendo feitos contatos com pares (pessoas com experiência vivida em transtornos mentais graves) para serem futuros instrutores do Imagus.
De acordo com a única revisão dos Recovery Colleges (publicada até 2022), uma investigação que examinou as características e os valores fundamentais dos Recovery Colleges consiste, na sua maioria, em estudos de caso de um único local e resultados como o empoderamento e a redução do estigma são avaliados com ferramentas padronizadas. Existem atualmente no mundo 221 Recovery Colleges e o Imagus deverá ser credenciado e associado à uma rede/federação mundial, sendo essa iniciativa a primeira do Brasil e da América Latina.
Caso essa iniciativa seja bem-sucedida, pretende-se replicar esse projeto em outras cidades do Brasil tais como: Belo Horizonte, Campinas, Florianópolis, Foz do Iguaçu, Rio de Janeiro e São João del Rei, tendo-se ainda a intenção de se ter os CAPS como instituições parceiras. O nosso Recovery College tem a supervisão Prof. Mike Slade, da Nottingham University (Inglaterra), com o apoio do IRCC (International Recovery & Citizenship Collective) da Yale University (EUA). O nosso foco é a adaptação das características internacionais ao modelo padrão da nossa realidade e cultura locais.