Depoimentos

CONCEITUAÇÃO DO RECOVERY SOB O PRISMA DE UMA PESSOA COM EXPERIÊNCIA VIVIDA

José Alberto Orsi1 “Nada sobre nós, sem nós.”

O que é recovery? Na tradução literal do inglês, o termo seria o de “recuperação” ou “reestabelecimento”. Contudo, a melhor palavra para designar esse termo, na opinião do grupo de pesquisadores ligados à ABRE (Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Pessoas com Esquizofrenia) é “superação”, visto que após um episódio psicótico não é possível se retornar ao que se era antes, em termos psicológicos e existenciais, já que permanecem fortes marcas, cicatrizes, na vida de uma pessoa que enfrenta um surto ou crise psicótica. De maneira geral, recovery pode ser definido como:

  • “Um processo único e profundamente pessoal de alteração das próprias atitudes, valores, sentimentos, objetivos, competências e/ou papéis. É uma forma de viver uma vida satisfatória, com esperança e útil, mesmo dentro dos limites causados pela doença” (Anthony, 1993);
  • “O recovery implica o desenvolvimento de novos sentidos e objetivos da vida de uma pessoa à medida que esta vai ultrapassando os efeitos catastróficos da doença mental” (Anthony, 1993);
  • “O estabelecimento de uma vida plena, significativa e um senso positivo de identidade fundado na esperança e autodeterminação” (Andresen et , 2003);
  • “Recovery envolve viver tão bem quanto possível”

O movimento do recovery surgiu nos anos 1970 e 1980 nos EUA, através de movimentos de usuários de saúde mental de autoajuda, com empoderamento e defesa de direitos. Esse movimento teve como origem e pano de fundo as lutas pelos direitos civis nas décadas anteriores, alicerçados

1 Engenheiro civil pela Poli/USP, MBA pela University of Southern Mississippi, MSc e doutorando pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp)

em grupos de ajuda mútua. Paralelamente, foram desenvolvidos estudos de seguimento desafiando a concepção de que, especialmente no caso da esquizofrenia, transtornos mentais graves levam à deterioração progressiva, crônica e irreversível. Na realidade, pode-se verificar através de estudos que em muitos casos havia uma real e possível recuperação clínica, social e funcional, com reabilitação psicossocial e recuperação na doença ou apesar dela De fato, recovery pode ser encarado com uma jornada, ou processo contínuo, e não como ponto de chegada (Davidson et al., 2005; Deegan, 1988; Harding et al., 1992).

Um dos modelos mais consagrados do paradigma do recovery no mundo é o modelo CHIME, acrônimo constituído pelas palavras: Connectedness (conexão com os outros); Hope and Optimism about the future (esperança e otimismo sobre o futuro); Identity (identidade); Meaning in life (significado na vida); e Empowerment (empoderamento) (Leamy et al., 2011). Existe também um conceito ligando recovery e cidadania: o dos cinco Rs: Rights (direitos); Responsibilities (responsabilidades); Roles (papéis); Resources (recursos); Relationships (relacionamentos) e Belonging (pertencimento) (Rowe et al, 2015).

Algumas implicações práticas do paradigma do recovery envolvem focar naquilo que era antes periférico mas que agora se torna central: a perspectiva do “paciente”, colocando-se o “paciente” como expert e melhor conhecedor de sua própria história. Ele passa a ser uma “pessoa” antes de ser “paciente”, com soluções cotidianas para problemas cotidianos. As metas vêm da pessoa e o suporte para alcançá-las vêm dos profissionais. As necessidades humanas tais como trabalho, amor e lazer podem ser sinergéticas com o tratamento. O tratamento é encarado como um meio para uma vida melhor, e não como fim ou objetivo final. Profissionais atuam como colaboradores, com soluções específicas para problemas específicos e serviços definidos pelos usuários. Algumas das maneiras de se promover o recovery envolvem potencializar as relações entre usuários e seus pares e familiares, bem como entre usuários e profissionais, com um compromisso organizacional dos profissionais e no apoio de uma prática de recuperação pessoal definida pela pessoa. Foca-se na promoção da cidadania e inclusão social (Slade, 2009)

Na prática, e dentro do contexto da ABRE, recovery, que é uma recomendação e diretriz da Organização Mundial de Saúde (OMS) para os anos desde 2013 (Organização Pan-Americana da Saúde, 2022; World Health Organization, 2021), pode ser resumido em ações de acolhimento, estabelecendo relações de confiança mútuas entre a pessoa com transtorno mental grave, seus pares e respectivos profissionais de saúde mental que manejam o tratamento sob a abordagem psicossocial e psicoeducativo.

Eu conheci a ABRE e me tornei voluntário dessa ONG em 2003, e foi através dela que pude construir a minha jornada de recovery, através do conhecimento e interação com outras pessoas com o mesmo diagnóstico e início do processo de superação da doença. A missão da ABRE é a de melhorar a qualidade de vida das pessoas com esquizofrenia e seus familiares através do apoio, informação e psicoeducação, lutando por seus direitos e combatendo o estigma. A ABRE, fundada em dezembro de 2002, possui atualmente grupos de acolhimento para familiares, usuários e mistos. Possui também um grupo de palestras superação de pessoas com transtornos mentais graves, a Comunidade de Fala (CdF-SP), iniciada em abril de 2015, atualmente com unidades em várias cidades no Brasil e em Portugal.

A ABRE oferece também atividades artístico-culturais através de cursos e workshops, oferecidos pelo Laboratório de Criação Casa Azul (LACCA), projeto lançando em maio de 2016, e que é a “antessala” do futuro Imagus Recovery College (a ser nominado como “Escola de Superação e Cidadania”). O projeto do Imagus está previsto para ser lançado em São Paulo no primeiro semestre de 2025, sendo essa a primeira iniciativa nesse sentido no Brasil e na América Latina. Os recovery colleges oferecem programas educacionais focados na abordagem, capacitação e reinserção sócio-acadêmico-profissional de adultos, auxiliando os seus processos de recovery e cidadania plena. Os usuários, agora chamados de pares, são agora considerados “estudantes”, e não mais “pacientes”, e são também alocados como instrutores e professores. Existem opções de cursos diversos, sem a substituição da educação formal, dando subsídio e apoio para que esses estudantes possam ser reintegrados ao sistema educacional e profissional formal.

Na parceria usuário versus profissionais, e no suporte de pares, podem ocorrer imprevistos em função da imponderabilidade que envolve o tratamento psiquiátrico e terapêutico, mas é de suma importância que seja estabelecido um diálogo entre os envolvidos, eliminando muros e construindo pontes. Eliminar o isolamento social com o estabelecimento de grupos de ajuda mútua (“tribos” e não “guetos”) com escuta entre as partes, em um processo decisório e de diálogo baseado na horizontalidade. O verdadeiro mote do paradigma do recovery é: “nada sobre nós, sem nós”, com humanização, cidadania, empoderamento, protagonismo e pertencimento daqueles que usualmente são chamados de “pacientes”.

Infelizmente, não só no nosso país, mas no mundo, de maneira geral, existe forte estigma e preconceito quando a temática é a “loucura”. Na ABRE defende-se um “despertar” das pessoas com experiência vivida, agora nominados de “pares”, usufruindo elementos do recovery (superação), através de processos criativos, com autonomia e apoio da família e amigos (suporte de pares). O foco agora é na perspectiva do paciente, com o psiquiatra/médico “calçando o sapato” do seu “paciente”. Medicação e autonomia são negociadas no processo de decisão relativo ao tratamento. Combate-se o estigma internalizado e do profissional através de psicoeducação, combatendo a profecia apocalíptica, e muitas vezes auto cumprida, de que os transtornos mentais graves não possuem recuperação tratamento de reabilitação. Faz-se clara distinção entre o recovery clínico e o recovery social. Suporte por pares, com a formação de grupos e vínculos são prestigiados e estimulados.

O processo do recovery agora é visto sob a óptica do paciente, que enfrenta um dia de cada vez, “amansando um leão por dia”. Protagonismo e suporte pelos especialistas em vivência são estabelecidos como caminho a prática orientada ao recovery sob realidade brasileira, pois as experiências, vivências e lições enquanto par são únicas. Lições e aprendizados de vida, o know-how, é agora a partir das experiências principalmente dos pares, a partir da vivência de cada um. Isso representa uma enorme mudança de paradigma e no protagonismo da pessoa que é central no tratamento, ou seja, o usuário final. Por fim, pode-se contatar pelas evidências não apenas científicas, mas vivenciais através do relato de narrativas de pessoas com transtorno mental

grave, e em recuperação, que o recovery é um caminho inexorável e sem volta no manejo e trato das questões relativas à saúde mental no mundo, não só como experiência e movimento internacional, mas com sucesso consolidado e adotado como política de saúde mental da OMS.

Algumas intervenções orientadas ao recovery podem ser elencadas abaixo (Slade et al., 2014):

  • Casas Soteria (Soteria Houses)
  • Diálogo Aberto (Open Dialogue)
  • Gestão Autônoma da Medicação (GAM)
  • Intervenções baseadas na Psicologia Narrativa
  • Intervenções de suporte ou apoio por pares (Peer Support Interventions)
  • Manejo de casos baseado nos pontos fortes (Strengths Model)
  • Plano conjunto para crise (Joint Crisis Plan)
  • Psicoterapia Positiva
  • Recovery Colleges
  • Suporte e inserção individual no trabalho (Individual Placement and Support)
  • Terapias Cognitivas
  • Tomada de decisões conjuntas (Shared Decision-Making)
  • Wellness Recovery Action Planning (WRAP)

REFERÊNCIAS:

ANDRESEN, R., OADES, L., & CAPUTI, P. The experience of recovery from schizophrenia: towards an empirically validated stage model. Australian & New Zealand Journal of Psychiatry, 37(5), 586-594. 2003.

ANTHONY WA. Recovery from mental illness: the guiding vision of the mental health service system in the 1990s. Psychosoc Rehabil J.;16(4):11– 23. 1993.

DAVIDSON, L., O’CONNELL, M. J., TONDORA, J., LAWLESS, M., & EVANS,

A. C. Recovery in serious mental illness: A new wine or just a new bottle?.

Professional psychology: research and practice, 36(5), 480. 2005.

DEEGAN, P.   E.   Recovery:   The   lived   experience   of   rehabilitation.

Psychosocial rehabilitation journal, 11(4), 11. 1988.

HARDING, C. M., ZUBIN, J., & STRAUSS, J. S. Chronicity in schizophrenia: Revisited. The British Journal of Psychiatry, 161(S18), 27-37. 1992.

LEAMY, M., BIRD, V., LE BOUTILLIER, C., WILLIAMS, J., & SLADE, M.

Conceptual framework for personal recovery in mental health: systematic review and narrative synthesis. The British journal of psychiatry, 199(6), 445- 452. 2011.

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Orientações sobre Serviços Comunitários de Saúde Mental: Promoção de Abordagens Centradas na Pessoa e Baseadas em Direitos. Brasília, DF: OPAS; 2022. Disponível em: https://doi.org/10.37774/9789275726440

ROWE, M. Citizenship and mental health. Oxford: Oxford University Press. 2015.

SLADE, M. Personal recovery and mental illness: A guide for mental health professionals. Cambridge: Cambridge University Press. 2009.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Comprehensive mental health action plan  2013–2030.  Geneva:        2021.  Disponível                     em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/345301/9789240031029- eng.pdf?sequence=1

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